... Não aceitava que o seu verdadeiro amor estava agora para sempre perdido. Pensava nela todos os dias, embora cada vez mais pausadamente.
Dava-lhe a impressão de que o tempo a ia arrumando com cuidado num canto, como se fosse uma fera cuja fúria não queria atiçar; mas o facto é que a dor permanecia lá. Talvez não tão dilacerante como no princípio; tranformara-se já em sofrimento crónico, era como o murmúrio do vento a fustigar as folhas, uma chama que ardia em lume brando, um estrépito de fundo que não explodia mas também não morria. Vivia em negação, recusava-se a aceitar as consequências da perda da sua amada, evitava o luto que talvez o libertasse. Tudo o resto, a passagem para Lisboa, a oposição ao regime, o desejo insaciável de mudança, mais não eram do que sequelas do pecado original.


José Rodrigues dos Santos, A vida num sopro

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