Demasiado tempo

Quatro horas é muito tempo na vida de uma rapariga. Isto foi o que o meu amigo me disse quando lhe contei que ela me tinha telefonado para dizer que segunda-feira tinha tempo para estar comigo, e eu lhe perguntar quanto, e ela tinha respondido, o suficiente, e eu tinha dito, pelo menos quatro horas, e ela disse que isso não podia, que era demasiado tempo.


Pedro Paixão, in Amor Portátil

As aventuras do João Sem Medo


"-Vou pelo bom caminho, como é costume, claro - resolveu João Sem Medo, embora desconfiado de tanta felicidade aparente. - O contrário seria idiota e doentio.
(...) (ao chegar à porta que leva à felicidade...)
Quase ao mesmo tempo assomou à porta do cubo uma figura monstruosa. Homem? Talvez; mas a quem tivessem decepado a cabeça, aberto dois olhos redondos no peito e talhado no estômago uma boca de lábios grossos e carnudos que tentaram sorrir para João Sem Medo enquanto articulavam esta saudação com voz desentoada de ventríloquo:
- Que a paz e a estupidez estejam contigo. Vens preparado para a operação?
- Que operação?- interrogou João Sem Medo, suspeitoso.
O descabeçado, de cigarrilha na boca do estômago, expôs-lhe então com paciência burocrátrica:
- Ninguém pode seguir o caminho asfaltado que leva à felicidade completa sem se sujeitar a este programa bem óbvio. Primeiro: consentir que lhe cortem a cabeça para não pensar, não ter opinião, nem criar piolhos ou ideias perigosas. Segundo e último: trazer nos pés e nas mãos correntes de ouro...
João Sem Medo ouriçou-se numa reacção institiva:
- Nunca! Bem se vê que não tens a cabeça no seu lugar. (...) Então prefiro o outro caminho.
- Palerma! - lamurinhou o guarda com os olhos do peito marejados de lágrimas sinceras. Vais passar fome, sofrer dias de terror aflito...
(...)
Mas João Sem Medo nem lhe respondeu. Já ia longe, passo bem marcado, orgulhoso de sentir a cabeça nos ombros. E horas depois, quando chegou à clareira, enveredou, decidido, pelo caminho de cardos e das árvores sinistras, a gritar desafiante para a floresta:
- Bem sei que podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as orelhas, transformar-me em lagarto, em morcego, em aranha, em lacrau! Mas juro que não hei-de ser infeliz PORQUE NÃO QUERO.
E João Sem Medo continuou a subir o caminho árduo, resoluto na sua pertinácia de ocultar o medo - a única valentia verdadeira dos homens verdadeiros."

José Gomes Ferreira - As Aventuras do João Sem Medo

Ornatos Violeta


Marta não quer chorar
Guarda nela sem ter razão
As negras ondas do mar
Tentem ver no cordão
Que vos une à razão
Quão pior é morrer devagar

Marta não quer chorar
Mas seus olhos vertem a dor
De morrer para não matar
É que a vida são
Canções de épicos refrões
Que farão o mar fluir
Só que um dia vão ter de acabar

Esta é só mais uma canção
Não lhe fiz um refrão
Porque Marta já está a chorar
Ela comia chocolates com a boca. O sabor escuro dos chocolates, tabletes, potes, quadradinhos, bombons de chocolate negro, branco e cor de chocolate. Ela gostava muito de chocolates. Os chocolates não fazem borbulhas, dizia, os chocolates fazem muitas coisas mas não fazem borbulhas. São o meu vício, o meu único vício. Isso e ir ao cinema.

Ela gostava dele como quem gosta muito de chocolates. O gosto ficava-lhe na boca e o prazer encontrado anseia logo por ser repetido. A rapariga mais alegre que havia estremecia só de pensar nos beijos dele enquanto ia pela avenida a caminho do cinema. Do que ela gostava mesmo era de chocolates e de ir ao cinema, onde ia quase todos os dias, impreterivelmente três vezes por semana. Trabalhava num bar ao fim da tarde e o pequeno ordenado que recebia servia para isso e só para isso: comprar chocolates, ir ao cinema. De resto, era livre para fazer o que lhe apetecesse. No cinema a realidade de coisas cresce espectacularmente, afirmava, tanto que as coisas fora do cinema só têm realidade que os filmes lhes emprestam, não achas? perguntava sem admitir qualquer resposta. São os meus vícios, os meus únicos vícios: comer a realidade com os olhos e sentir o prazer a desfazer-se-me na boca. E agora os teus beijos, malandro.



Pedro Paixão, in Muito, meu amor
Sally Reardon: I guess when your heart gets broken, you sort of start to see the cracks in everything. I'm convinced that tragedy wants to harden us, and that our mission is to never let it.


in Felicity

Tout le Monde - Carla Bruni





Tout le Monde a cherché quelque chose un jour,
Mais tout le Monde ne l'a pas trouvé

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